domingo, 3 de março de 2013

COLETÂNEA O CANDOMBLÉ - A ÁRVORE DA JUREMA



Desde o século XVI, documentos escritos pelo colonizador e narrativas deixadas por cronistas e viajantes relatam rituais mágico-religiosos encontrados entre populações indígenas do nordeste brasileiro, em que bebiam, fumavam, manipulavam ervas, invocavam seus antepassados. Um desses escritos descreve a santidade do Jaguaripe ocorrida no sertão baiano por volta de 1583, evidencia um processo de religiosidade sincrética nascida no encontro entre missionários e índios e revela relações de dominação-subordinação entre nativos e portugueses. 

O culto aos maracás da santidade reproduz a crença de que os maracás abrigavam os espíritos, sendo adorados e idolatrados através de cantos, danças e do uso do tabaco. Apresenta-se simbolicamente como uma forma de resistência da população indígena contra a colonização portuguesa. 

Um outro documento menciona o falecimento na prisão, em 1758, de um índio da aldeia de Mepibu, no Rio Grande do Norte, preso por ter feito adjunto de jurema, cerimônia coletiva com fins religiosos e terapêuticos, em que dançavam, fumavam cachimbo e bebiam jurema. 

Em 1816, o viajante inglês Henry Koster observa uma dessas cerimônias realizadas nos arredores de Olinda e descreve que havia um grande vaso de barro no centro da cabana em torno do qual dançavam homens e mulheres e o cachimbo era passado entre os participantes. 

A prática da jurema nordestina, também conhecida como catimbó, é parte de um longo processo de transformação e assimilações culturais que se difundem pela região, sendo encontrado nas comunidades indígenas e no interior de diferentes religiões afro-brasileiras, como o candomblé, o xangô e a umbanda. 


A jurema compõe um complexo de concepções e representações em torno da planta jurema e se fundamentam no culto de possessão aos mestres, cujo objetivo é curar os doentes e resolver os problemas práticos da vida cotidiana, como os infortúnios amorosos e profissionais. Como ressalta Roger Bastide, o que conta “são os desejos ou as necessidades individuais, é a vida cotidiana com suas doenças, seus romances de amor, seus ganhos, suas tristezas e seus sonhos de um futuro melhor”. Esse complexo inclui ainda a bebida preparada com a casca da jurema e o uso da fumaça dos cachimbos nos rituais. 

O culto tem por base um sistema mitológico no qual a jurema é considerada árvore sagrada e, em torno dela, dispõe-se o “reino dos encantados”, formado por cidades, que por sua vez são habitadas pelos “mestres”. Uma outra explicação mitológica apresenta uma visão cristã quanto às origens do culto ao afirmar que, antes do nascimento de Deus, a jurema era tida como uma árvore comum, mas, quando a virgem, fugindo de Herodes, no seu êxodo para o Egito, escondeu o menino Jesus num pé de jurema, que fez com que os soldados romanos não o vissem, imediatamente, a árvore encheu-se de poderes sagrados, justificando, assim, que a força da jurema não é material, mas espiritual, dos espíritos que passaram a habitá-la. 

O mestre é a entidade espiritual central da jurema nordestina. Os mestres são falecidos juremeiros que detinham os conhecimentos de sua prática. Segundo Mário de Andrade, no século XVII, em Portugal, os feiticeiros curadores eram chamados de mestres. Nas cerimônias da jurema, também se denomina mestre o dirigente de uma sessão. Os mestres vivos incorporam os mestres mortos que habitam as cidades sagradas da jurema, ligando esses dois mundos por meio do transe. Os mestres seriam espíritos curadores que, em vida, conheceram os segredos das plantas curativas e que são convocados para trabalharem em uma sessão, a fim de aliviar os sofrimentos humanos. 

Cada um tem uma linha, que é representada pelo cântico entoado pelo dirigente da sessão e que precede sua visita a terra. O canto é uníssono e acompanhado pelo maracá. A linha resume a ação sobrenatural, as excelências do poder e a sua especialidade técnica. Com fisionomia própria, gestos, voz, manias, predileções, cada mestre narra as suas aventuras, conta o seu nome e a sua vida. Ele possui a semente, o sinal de sua legitimidade e autenticidade, eficácia e poder sobrenatural. 

Além dos mestres, outra categoria de espírito é significativa, o caboclo, ao qual se atribui identificação indígena e conhecimento de ervas e raízes. São muitas as entidades espirituais cultuadas no universo da jurema, entre elas: Mestre Carlos, Mestre Seu Zé Pilintra, Manoel Cadete, Mestra Faustina, Mestre Germano, Mestra Luziara, Mestra Maria do Acais, Mestre Malunguinho, Mestre Pilão, Negro Gerson, Cabocla Jurema, Caboclinho da Jurema, Caboclo Pedra Preta, Índio Pena Branca, Japiassu, Rei Canindé, Rei de Urubá, Rei Salomão. 

A prática da jurema continua vivenciando processos de reelaborações, adquirindo outros elementos simbólicos, como na fase atual da umbandização do culto, o que significa, nessa dinâmica, a sua permanência enquanto expressão de grupos sociais subalternos. Mais que isso, no plano ritualístico significa resistência aos modelos de opressão socioeconômica, contribuindo em última instância para a manutenção de um referencial étnico e identitário, sejam nas comunidades indígenas ou nas religiões afro-brasileiras. 


(Fragmentos do texto publicado na Revista História Viva, vol. 6 – Cultos Afro. São Paulo: Ediouro, 2007).

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