Parecer e Projeto de Lei (Lei do Ventre-Livre) de 1870 referiam-se à família. A 7ª - Providências para manter a integridade da família, estabelecendo que, no caso da libertação das escravas, os filhos menores de oito anos acompanharão suas mães (art. 6º, § 6º) e ampliando-se a disposição do artigo 2º da Lei nº 1695 de 15 de setembro de 1869, a qualquer caso de alienação ou transmissão (art. 6º, § 11º)" (apud Giacomini, 1983: 15).
Pelo projeto de lei, "verificava-se que a legitimação da família negra se referia à mulher e seus filhos" (Bernardo, 1997: 61). Aqui se encontra a causa de se facultar à escrava ganhadeira o pecúlio, que deveria ser utilizado com os seus filhos. Na realidade, no momento em que passa a vigorar essa lei, as crianças nascidas a partir dessa data não são mais escravas, mas são filhos de escravos.
A época dessa lei foi marcada pelo pânico. O medo se reflete em uma notícia do Diário do Rio de Janeiro, em 1871: O que ficará sendo a escravidão? Qual será a autoridade, a posição do senhor, quando o escravo puder, perante ele, invocar os seus direitos em relação à propriedade, em relação à família, quando puder exigir dele a sua emancipação em nome da lei?
Não cogitou (o governo) que, se conceda ao escravo o direito da sucessão ativa e passiva, é mister conferir-lhe o uso e o exercício ativo e passivo de todas as ações que nasceu do direito de família, que regulam as sucessões e a transmissão de herança? Concebe alguém que, sem completa anarquia, os escravos possam mover ações em juízo, como autores e como réus, que possam demandar legados e heranças que possam mover ações de filiação? (apud Giacomini, 1983).
As crianças nascidas no pós-Ventre-Livre tornaram-se uma ameaça tão grande aos senhores que a possibilidade de pecúlio para a mãe-escrava simplesmente suavizava o pânico e o prejuízo do senhor. Assim, se a reprodução escrava, anteriormente, era vista de maneira absolutamente positiva, a partir de 1871 a criança negra torna-se um peso difícil de se desvencilhar.
A Lei do Ventre-Livre, com o seu pecúlio, nada mais fez do que acentuar uma forma alternativa de família que tem suas origens na diáspora e desdobramentos na escravidão e no pós-abolição. Se na África as mulheres viviam com seus respectivos filhos em casas conjugadas à grande casa do esposo, num sistema poligínico, no Brasil rompeu esta relação, permanecendo a chefia da família com a mulher, florescendo a matrifocalidade.
Essa forma alternativa de família está diretamente relacionada à autonomia feminina que veio sendo conquistada desde a África, onde as mulheres foram as principais responsáveis pela rede de mercados que interligavam todo o território iorubá, com experiência de excelentes comerciantes, atribuída também às mulheres bantas.
Essas atividades comerciais recriadas no Brasil ainda na época da escravidão fazem com que surjam as ganhadeiras, escravas ou livres, que em muitas regiões tornam-se as responsáveis pela distribuição dos principais gêneros alimentícios, chegando a comprar a própria alforria, numa forma de liberdade que, por sua vez, beneficiou muito mais as mulheres, que eram menos necessárias à produção sobre a qual o sistema escravocrata estava constituído.
Assim, as mulheres negras, comparadas com seus parceiros, tiveram melhores oportunidades de trabalho, construindo brechas no mercado de trabalho livre que então se formava. Continuaram a ser ótimas comerciantes; foram também amas, lavadeiras, cozinheiras; chegaram a ser também operárias das primeiras fábricas no início do processo de industrialização em São Paulo.
Desse modo, a matrifocalidade como forma alternativa de família parece fazer parte dos fluxos, das trocas constituídas na diáspora. Tanto para a mulher africana quanto para a afro-descendente, a matrifocalidade aparentemente não foi somente uma imposição da escravidão e do pós-abolição, com a conseqüente marginalização do homem negro no mercado livre durante as primeiras décadas do século XX, que o impossibilitava de assumir a chefia familiar.
A mulher negra parece viver a matrifocalidade de forma diferente das mulheres brancas. Em minhas pesquisas anteriores e na atual, pude verificar que para essas mulheres a matrifocalidade não é encarada como sofrida, pesada; pelo contrário, acentua sua autonomia, traz satisfação.
Klass Woortman, ao estudar a matrifocalidade na Bahia, obteve dados semelhantes aos meus: Um fato que merece menção é o de que a proporção de díades maternas em minha amostra é mais alta que nas de Hammel. O fato pode ser devido à diferença de amostragem, mas pode também ser devido a diferenças culturais entre as duas populações. Não disponho de informações relativas à ideologia familiar das comunidades peruanas estudadas por Hammel, mas podemos recordar que muitas mulheres na Bahia não desejam casar-se como foi observado por Landes e que elas podem facilmente despedir seus companheiros, caso estes não correspondam às expectativas.
Algumas mulheres declararam que preferiam receber visitas... A mesma liberalidade também é parte das atitudes dos homens, eles preferem deixar a casa se a mulher começa a ficar muito mandona ou reclamona (Woortman, 1987: 123).
Os achados de Woortman, como os de Landes e os meus, sugerem a existência de elementos culturais na matrifocalidade vivenciada por parte das mulheres negras no Brasil. Parry Scott, ao discutir como o homem e a mulher vivem a matrifocalidade, diz que: Esse termo identifica uma complexa teia de relações montadas a partir do grupo doméstico onde, mesmo na presença do homem na casa, é favorecido o lado feminino do grupo. Isso se traduz em: relações mãe-filho mais solidárias que relações pai e filho, escolha de residência, identificação de parentes conhecidos, trocas de favores e bens, visitas etc., todos mais fortes pelo lado feminino; e também na provável existência de manifestações culturais e religiosas que destacam o papel feminino (Scott, 1990: 39).
Na definição de matrifocalidade acima emergem elementos culturais que, no caso aqui estudado, foram criados durante a escravidão e mesmo no pós-abolição, além das ressignificações das experiências africanas.
Na África, a família poligínica propiciava relações mais estreitas entre mãe e filhos do que aquelas do pai com seus filhos, inclusive porque os filhos viviam com sua mãe em casas conjugadas à grande casa do esposo que vivia com a esposa principal e os filhos desta. O fato de viverem em casas conjugadas significa, no limite, que as diferentes esposas com seus respectivos filhos viviam em casas separadas da casa do esposo.
Por outro lado, Verger mostra que a família poligínica dilui a dominação masculina encontrada nas uniões monogâmicas. Na primeira, "as mulheres não são totalmente integradas, deixando-lhes este fato uma certa independência" (1992: 99). O mesmo autor, ao comentar as relações sociais que ocorrem no interior das famílias poligínicas, diz que "Nas grandes famílias, o entendimento é em geral mais cordato entre os filhos de uma mesma mãe do que entre aqueles que têm um pai comum mas mães diferentes" (Verger, 1992: 100).
Esse comentário de Verger ganha mais sentido se aliado às seguintes informações de Lawal, sobre a situação feminina: Desde que as mulheres no papel de mãe são idealizadas como amorosas, carinhosas e irrevogavelmente comprometidas com a proteção das vidas que elas trouxeram ao mundo, é irônico que essas mulheres sejam também acusadas de feitiçaria.
De acordo com Peter Morton-Williams, a identificação de feitiçaria com as mulheres pode estar relacionada com a poligamia típica dos iorubanos, em que há rivalidades, ciúmes mútuos e suspeitas; de um lado, encontra-se a co-esposa e seus filhos e, de outro, co-esposas e os parentes de seu marido. Sob essa atmosfera as mulheres demoram para engravidar, abortam; as desgraças, os infortúnios surgem como atos engendrados pelas outras co-esposas ou parentes hostis do marido.
Essas suspeitas desenvolvem-se em uma permanente "guerra-fria" em que todos participam dos rituais de proteção ou de agressividade. Em uma situação como essa uma mulher pode ser compelida a desenvolver os poderes ocultos para proteger tanto seus filhos como a si mesma (Lawal, 1996: 32).
A interpretação desses fatos ilumina o estreitamento das relações entre mães e filhos em detrimento das relações paternas. Na verdade, o que transparece é que os filhos gravitam em torno da mãe em uma interdependência totalizadora; inclusive o conflito entre irmãos do mesmo pai e de mães diferentes dá indicativos nessa direção.
Mas é sobretudo o fato da existência de uma verdadeira "guerra-fria" entre parentes, em que a mãe encontra-se sempre ao lado de seus filhos, para protegê-los, faz com que ela desenvolva poderes ocultos, transformando-se em feiticeira; indicando que as situações de conflito vividas pela mãe com seus filhos possibilitam o desenvolvimento de sentimentos maternos de tal monta que chega-se à feitiçaria como forma de proteção.
Na discussão entre instinto e sentimento, chamo Morin para fortalecer meus pensamentos, pois penetro em um território sagrado para o mundo ocidental, o do amor materno: A cultura insere-se completamente na regressão dos instintos (programas genéticos) e na progressão das competências organizacionais, reforçada simultaneamente por essa regressão (juvenilizante) e por essa progressão (cerebralizante) necessária a esta e aquela. Ela constitui um "tape-recorder", um capital organizacional, uma matriz informacional, apta a nutrir as competências cerebrais, a orientar estratégias heurísticas, a programar os comportamentos sociais (Morin, 1991: 85).
As aptidões substituem os programas estereotipados ou instintos, "mas elas só podem operacionalizar-se a partir da educação sócio-cultural e num meio social complexificado pela cultura" (Morin, 1991: 85).
É nessa perspectiva que entendo o desenvolvimento do sentimento materno entre as africanas. Em outras palavras, esse sentimento não é o instinto. No sapiens, tem-se a regressão instintual e a emergência de aptidões que se desenvolverão mais ou menos de acordo com a cultura através do processo de socialização. Não há dúvida de que as diferentes formas de família, com suas normas, fazem parte da diversidade cultural.
A poliginia parece possibilitar o desenvolvimento de sentimentos maternos diferenciados em relação à monogamia. Nesta última, a relação com o pai é mais próxima, pois existe a possibilidade de cuidados com a prole. Tanto é que, a partir da prática psicanalítica desenvolvida em uma clínica neuro-psiquiátrica na África Ocidental no período de 1962 a 1986, Ortigues e Ortigues (1984) revelam que na cultura africana é a mãe quem se relaciona corpo a corpo com a criança, sem intermediários.
Assim, no sapiens, tem-se a "aptidão natural para a cultura e a aptidão cultural para desenvolver a natureza humana" (Morin, 1991: 85). Esse aspecto, o do sentimento materno que envolve uma proteção sem limites entre as africanas fazendo com que se transformem em feiticeiras para salvaguardar a si mesmas e a seus filhos.
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