Mas além da matrifocalidade vivida por parte das mulheres africanas no Brasil e de aspectos importantes levantados para a compreensão da mulher deter o poder religioso, sublinha-se a existência também da matrilinearidade. Em outras palavras, a matrifocalidade, aqui, combina-se com a matrilinearidade. Este último conceito ganha sentido com a norma de que os filhos ao pertencerem sempre ao grupo da mãe, a descendência é matrilinear (Brown, 1972, p.3).
O fato da existência da matrilinearidade é comprovada também pelo jogo de búzios – peça-chave do Candomblé – em que as mães-de-santo tradicionais antes da primeira jogada pede o nome e o sobrenome da cliente, só que este último só do lado materno. Todo o jogo, especialmente as relações do presente com o passado, desenrola-se através da matrilinearidade. Desse modo, essa prática divinatória é povoada de imagens femininas, da bisavó, da avó, da mãe, da filha, da tia materna.
Assim, a definição de matrifocalidade discutida por Scott se completa. Em suas palavras: "é também na provável existência de manifestações culturais e religiosas que destacam o papel feminino" (1990: 38).
Para iluminar ainda melhor este fato - o da chefia feminina - torna-se importante destacar alguns fatores que foram incisivos para que a mulher viesse a ocupar o ápice da hierarquia religiosa, além dos outros que foram elencados no trajeto feminino da África para o Brasil.
As mulheres africanas pertencentes a etnias fons e iorubás exerceram em seus respectivos reinos um poder político importante. É claro que no presente da escravidão esse poder teve que ser ressignificado. Na realidade é totalmente contraditório com a situação de escravo o exercício de qualquer poder no plano do real. Assim, pode ter ocorrido uma transformação: se não existiam condições de exercício do poder real, exercia-se no plano do imaginário, através da religião.
No candomblé baiano há fatos que favorecem a minha interpretação: A ialorixá Omonikê, Maria Julia Figueiredo, que sucedeu Marcelina Obatossi na direção do já então intitulado Ilê Axé Iya Narso Oka, foi a última a ter os títulos africanos de Ialodê e Erelu. Isto nos leva à representação das mulheres nagô-iorubás da Bahia.
Omonikê era Provedora-mor da devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, fundada pela ala feminina da Irmandade dos Martírios na década de 1820 e sincretizada com a sociedade Gueledé. Na Bahia, a ialorixá da Casa Branca, a Ialodê Erelu, a Ialodê da Gueledé e a Provedora-Mor chegaram a ser a mesma pessoa, isto é, a representante suprema das mulheres nagô-iorubás com direito a assento no Aremafá da casa de Oxóssi (Silveira, 2000: 93). Desse modo, as informações de Renato da Silveira indicam que o poder feminino ressignificado, no Brasil, passou para o âmbito religioso.
Na verdade, quem vai receber o título de Ialodê é a ialorixá Omonikê - Maria Julia Figueiredo. Além disso, ela concentrou em suas mãos o cargo de Provedora-Mor da Irmandade da Boa Morte, o da principal sacerdotisa do Terreiro da Casa Branca, e também o de ialaxé das Gueledés. Essa concentração de poder desnuda, de um lado, o poder da mulher, pois todas essas organizações são femininas; de outro lado, mostra a interpenetração entre a Gueledé, a Irmandade da Boa Morte e o Candomblé.
Outro aspecto que deve ser destacado para iluminar o fato de a mulher vir a ser a sacerdotisa-chefe do Candomblé diz respeito à densidade do sentimento materno na africana.
Esse sentimento, por sua vez, tem muito a ver com a noção de Terra-Mãe comentada por Morin: A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda a sua extensão nas civilizações agrárias, já históricas, o trabalhador Anteu colhe sua força no contato com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada na Grande Deusa... onde jazem seus antepassados, onde ele se julga fixado desde sempre.
Com esta fixação ao solo, virá impor-se à magia da terra natal; que nos faz renascer por que é nossa mãe... É bem conhecida a dor do banido grego ou romano que não terá ninguém que lhe continue o culto como ficará separado para sempre da Terra-Mãe (Morin, 1988: 114).
A África contém para os escravos do Brasil todas as características da Terra-Mãe de que fala Morin. Era dela que o africano retirava o alimento com os seus diferentes significados para a totalidade de sua vida, é nela que se encontram enterrados os seus antepassados e onde ele pensa em permanecer, pois é a sua terra natal (Bernardo, 1997: 108).
Mas além do africano não permanecer na sua terra de origem, defrontou-se com a escravidão. Assim, se no plano do real a situação não valia a pena ser vivida, devia existir compensação. É no plano do simbólico e do imaginário que se encontram as respostas para resistir.
Nesse sentido, torna-se importante evidenciar a diferenciação feita por Jung entre Pátria e Terra: "A pátria supõe limites, isto é, localização determinada, mas o chão é solo materno em repouso e capaz de frutificar" (Jung, 1993: 39).
É no solo brasileiro que frutificará o Candomblé, a terra-mãe como metáfora para os africanos e seus descendentes. Se o Candomblé representa a terra-mãe que, por sua vez, possui os seus significados ligados ao feminino, essa expressão religiosa, ao representá-la, ganha todas as suas significações. É nesse sentido que a grande sacerdotisa do candomblé é chamada de mãe-de-santo.
Essa denominação não é casual - Jung afirma: "É a mãe que providencia calor, proteção, alimento, é também a lareira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta. A mãe é também a roça fértil e o seu filho é o grão divino, o irmão e amigo dos homens, a mãe é a vaca leiteira e o rebanho" (Jung, 1993: 39).
Na verdade, Jung está pontuando as características do arquétipo de mãe, no qual estão incluídos sentimentos que nas africanas e suas descendentes foram tão intensificados a ponto de levar estas mulheres a se tornar feiticeiras para proteção de seus filhos. A possível ampliação desses sentimentos foi uma das causas que tornou plausível à mulher viver a matrifocalidade tanto na família consangüínea como na de santo. Tanto isso é verdade que os primeiros terreiros de que se tem notícia, datando dos séculos XVIII e XIX, são os candomblés de origem iorubá, cuja chefia é feminina.
Mas não foram somente os candomblés baianos que foram fundados por mulheres. Em São Luis (MA) tanto o Tambor de Mina quanto a Casa de Nagô possuem nas suas origens o feminino. O primeiro foi fundado por Maria Jesuína, africana do Benin; Josefa e Joana, vindas de Abeokuta, fundaram a Casa de Nagô (Ferreti, M., 1996).
Dessa forma, percebe-se que a troca do poder religioso entre os sexos, que partilha das idéias de Gilroy sobre a diáspora, pode ser melhor explicitada ao recolocar a noção de Terra-Mãe, iluminando a necessidade da mãe, da mulher, da proteção feminina para os africanos ao deixarem a sua terra natal – a África.
A explicação dada, por uma mãe-de-santo tradicional, sobre o fato da sucessão no seu terreiro seguir normas matrilineares é dita da seguinte forma: "Olhe minha filha na minha caso só mulher pode ser rainha; Ora por quê? Ela tem mais axé".
A resposta dada pela sacerdotisa sobre o fato de ser a mulher a grande sacerdotisa do candomblé faz com que eu retome a discussão da mulher africana, dos cultos da Iá Mi Oxorongá, que Laval (1996) refere-se as estas últimas como mais poderosas que os orixás, que por sua vez, parecem ter relações com o fato de as mulheres terem desenvolvido poderes ocultos para proteger a si e as seus filhos dos conflitos originados na família poliginica; do desenvolvimento profundo do sentimento materno e começo a compreender porque a mulher é a sacerdotisa central dos primeiros terreiros que se tem notícia.
Mais precisamente, o exercício do amor, do afeto – parece desenvolver o axé. Isto é, troca-se o amor por axé. É essa relação determinante no candomblé – a reciprocidade.